domingo, 19 de abril de 2015

Apreciação: Documentário Janela da Alma

As imagens iniciais do documentário já são carregadas de conotações: o fogo crepitando em gravetos. O fogo foi a maior descoberta do homem pré-histórico, tanto que é o elemento presente no mito da caverna de Platão, o qual representa a luz, indispensável à visão humana. Tido como fonte de luz, calor e proteção, ele se aproxima do que é o olho para nós. Olhar nos olhos ainda é um sinal que transmite confiança e calor. Nossos olhos capturam a luz e nos fazem enxergar uma pequena parte da extensa possibilidade do espectro eletromagnético, mas essa parte já é capaz de nos livrar de alguns perigos cotidianos.

O mito da caverna ainda é bastante contemporâneo e, para José Saramago, escritor de “Ensaio sobre a Cegueira”, vai ser cada vez mais devido ao fato de as representações (as sombras das imagens produzidas pelo fogo) estarem se confundindo com a realidade (as coisas próprias). Saramago acredita ainda que, na verdade, somos ou nos tornamos todos cegos em determinados sentidos – cegos da razão, cegos da sensibilidade. Cristovam Buarque diria que estamos sendo treinados para a indiferença, pois assistimos indiferentes aos horrores televisionados que, de tão repetidos, deixam de nos sensibilizar.

Ao longo de todo o filme, explora-se a técnica de imagens desfocadas, o que é maravilhoso porque é mais ou menos assim que enxergam as pessoas que possuem deficiências visuais como a miopia. Se essa técnica provoca certo desconforto para quem assiste, imagine quem precisa conviver com o problema. A utilização dos círculos de confusão na fotografia já não é tão agradável porque nossa visão não é capaz de produzi-los tão isoladamente, isso só é possível através de equipamentos.   

O neurologista Oliver Sacks, diz que as nossas emoções são codificadas na imagem, observação que considero brilhante porque elucida o olhar como algo que não é somente físico, mas extremamente mediado por nossos sentimentos, valores, concepções. Vemos coisas que outras pessoas não vêm porque estão imersas em outros olhares, o que significa que nosso olhar sobre algo diz muito mais sobre nós mesmos do que sobre a coisa. Quase impossível não se lembrar da psicologia das formas, o conceito de gestalt.

Se compreendesse bem o inglês e francês poderia muito bem fechar os olhos e apenas ouvir o documentário, mas preciso da visão para ler as legendas. Em alguns momentos, a própria música de fundo me foi um convite para fechar os olhos.

Os depoimentos capturados dão a entender que precisamos aprender a conviver com nossas próprias condições, nossos próprios limites, existir através de si mesmo e não do outro, como sugere o fotógrafo cego Eugen Bavcar. Por esse mesmo motivo, o filme não chega a ser angustiante, pois os relatos dos entrevistados mostram como estes aprenderam a lidar com os próprios problemas e aceitá-los.

O documentário aborda, dentre outros temas, as diversas formas de olhar, que não se restringem apenas a olhar com os olhos físicos, mas com os olhos da imaginação, da lembrança, da mente. Trata-se mais especificamente da percepção do mundo pelos vieses de deficiência visual dos entrevistados. A opção de terminar no começo é uma grande sacada: um bebê abrindo os olhos para enxergar o mundo pela primeira vez. Mais poético impossível.

Dramas pessoais
Tal como o músico Hermeto Pascoal, nasci com estrabismo nos dois olhos, mas operei logo aos dois anos de idade e não sofri tantos traumas por isso, embora ninguém se esqueça de que eu era vesga (e ainda sou, em menor grau). Mesmo assim, precisei usar óculos por conta da miopia e os apelidos como “quatro olhos” e “fundo de garrafa” foram inevitáveis. Usar óculos na infância foi sempre um desconforto porque me sentia anormal, tornando-me uma pessoa um tanto tímida e retraída. Os depoimentos de todos os entrevistados têm em comum o fato de tomarem suas deficiências como fator determinante em suas próprias personalidades.

Muitas vezes preciso pedir ajuda para encontrar os óculos por ter esquecido onde os deixei. E, assim como a atriz Marieta Severo, isso me provoca um descontrole emocional e impotência enorme. O desespero de não poder contar com ajuda já me fez chorar, o que piorou tudo porque procurar entre lágrimas nos olhos foi ainda mais difícil. Meu namorado perdeu a visão de um olho por descolamento de retina aos 12 anos, desde então compartilhamos alguns dramas juntos. Por exemplo, testo constantemente a perda de detalhes que sofro ao retirar os óculos, brinco de ver até que distância consigo ler determinadas coisas.

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