As imagens iniciais do
documentário já são carregadas de conotações: o fogo crepitando em gravetos. O
fogo foi a maior descoberta do homem pré-histórico, tanto que é o elemento
presente no mito da caverna de Platão, o qual representa a luz, indispensável à
visão humana. Tido como fonte de luz, calor e proteção, ele se aproxima do que
é o olho para nós. Olhar nos olhos ainda é um sinal que transmite confiança e
calor. Nossos olhos capturam a luz e nos fazem enxergar uma pequena parte da
extensa possibilidade do espectro eletromagnético, mas essa parte já é capaz de
nos livrar de alguns perigos cotidianos.
O mito da caverna ainda é
bastante contemporâneo e, para José Saramago, escritor de “Ensaio sobre a
Cegueira”, vai ser cada vez mais devido ao fato de as representações (as sombras
das imagens produzidas pelo fogo) estarem se confundindo com a realidade (as
coisas próprias). Saramago acredita ainda que, na verdade, somos ou nos
tornamos todos cegos em determinados sentidos – cegos da razão, cegos da
sensibilidade. Cristovam Buarque diria que estamos sendo treinados para a
indiferença, pois assistimos indiferentes aos horrores televisionados que, de
tão repetidos, deixam de nos sensibilizar.
Ao longo de todo o filme,
explora-se a técnica de imagens desfocadas, o que é maravilhoso porque é mais
ou menos assim que enxergam as pessoas que possuem deficiências visuais como a
miopia. Se essa técnica provoca certo desconforto para quem assiste, imagine
quem precisa conviver com o problema. A utilização dos círculos de confusão na
fotografia já não é tão agradável porque nossa visão não é capaz de produzi-los
tão isoladamente, isso só é possível através de equipamentos.
O neurologista Oliver Sacks,
diz que as nossas emoções são codificadas na imagem, observação que considero
brilhante porque elucida o olhar como algo que não é somente físico, mas
extremamente mediado por nossos sentimentos, valores, concepções. Vemos coisas
que outras pessoas não vêm porque estão imersas em outros olhares, o que
significa que nosso olhar sobre algo diz muito mais sobre nós mesmos do que
sobre a coisa. Quase impossível não se lembrar da psicologia das formas, o
conceito de gestalt.
Se
compreendesse bem o inglês e francês poderia muito bem fechar os olhos e apenas
ouvir o documentário, mas preciso da visão para ler as legendas. Em alguns
momentos, a própria música de fundo me foi um convite para fechar os olhos.
Os
depoimentos capturados dão a entender que precisamos aprender a conviver com nossas
próprias condições, nossos próprios limites, existir através de si mesmo e não
do outro, como sugere o fotógrafo cego Eugen Bavcar. Por esse mesmo motivo, o
filme não chega a ser angustiante, pois os relatos dos entrevistados mostram
como estes aprenderam a lidar com os próprios problemas e aceitá-los.
O
documentário aborda, dentre outros temas, as diversas formas de olhar, que não
se restringem apenas a olhar com os olhos físicos, mas com os olhos da
imaginação, da lembrança, da mente. Trata-se mais especificamente da percepção
do mundo pelos vieses de deficiência visual dos entrevistados. A opção de
terminar no começo é uma grande sacada: um bebê abrindo os olhos
para enxergar o mundo pela primeira vez. Mais poético impossível.
Dramas
pessoais
Tal como o músico Hermeto
Pascoal, nasci com estrabismo nos dois olhos, mas operei logo aos dois anos de
idade e não sofri tantos traumas por isso, embora ninguém se esqueça de que eu
era vesga (e ainda sou, em menor grau). Mesmo assim, precisei usar óculos por
conta da miopia e os apelidos como “quatro olhos” e “fundo de garrafa” foram
inevitáveis. Usar óculos na infância foi sempre um desconforto porque me sentia
anormal, tornando-me uma pessoa um tanto tímida e retraída. Os depoimentos de
todos os entrevistados têm em comum o fato de tomarem suas deficiências como
fator determinante em suas próprias personalidades.
Muitas vezes preciso pedir
ajuda para encontrar os óculos por ter esquecido onde os deixei. E, assim como
a atriz Marieta Severo, isso me provoca um descontrole emocional e impotência
enorme. O desespero de não poder contar com ajuda já me fez chorar, o que
piorou tudo porque procurar entre lágrimas nos olhos foi ainda mais difícil. Meu
namorado perdeu a visão de um olho por descolamento de retina aos 12 anos, desde
então compartilhamos alguns dramas juntos. Por exemplo, testo constantemente a
perda de detalhes que sofro ao retirar os óculos, brinco de ver até que
distância consigo ler determinadas coisas.